Fonte: Valor Econômico
Entrevista com Dr. Luiz Girotto, Sócio V&G.
Por Adriana Aguiar, de São Paulo
Uma decisão inédita da segunda instância da Justiça federal considerou que tratados internacionais devem predominar sobre o posicionamento da Receita Federal do Brasil quando se trata da incidência de Imposto de Renda (IR) sobre prestações de serviços contratadas por empresas brasileiras, mas feitas por empresas no exterior. O entendimento proferido pelo Tribunal Regional Federal (TRF) da 4ª Região livrou uma petroquímica brasileira de pagar o imposto sobre os serviços prestados fora do país por duas empresas estrangeiras sem sede no Brasil – uma no Canadá e outra na Alemanha, ambos países que, à época, tinham convenções internacionais para evitar a bitributação firmadas com o Brasil vigentes.
Controvérsias como essa ocorrem porque a Receita Federal do Brasil entende que empresas que contratam serviços de empresas estrangeiras sem que haja transferência de tecnologia deveriam lançar os valores pagos por eles como rendimentos sujeitos à incidência do IR na fonte, como prevê o Ato Declaratório Cosit nº 1, de 2000. Isso ocorre mesmo nos casos de serviços prestados por empresas localizadas em países que possuem tratados contra a bitributação para afastar o pagamento do tributo no país contratante.
No caso da petroquímica que obteve a vitória no TRF, os países onde se localizam as empresas com as quais contratou serviços – Canadá e Alemanha – tinham vigentes em 2005, quando os negócios foram feitos, tratados para evitar a bitributação. Ambos estabeleciam, em seu artigo 7º, que prestações de serviços contratadas no exterior devem ser enquadradas como lucro da companhia estrangeira, o que isentaria as brasileiras do pagamento de IR. A empresa ingressou na Justiça para evitar a tributação do IR na fonte, mas perdeu na primeira instância e recorreu ao TRF, onde saiu vitoriosa na primeira turma. Mas a Fazenda Nacional recorreu com embargos infringentes contra o acórdão ao mesmo tribunal. Agora, ao julgar o novo recurso do fisco, a primeira seção do TRF entendeu, por maioria, que seria equivocada a aplicação do Ato Declaratório Cosit nº 1, que tenta tributar os serviços contratados no exterior. Os desembargadores afirmaram que, apesar de os tratados internacionais estarem no mesmo plano das leis ordinárias, eles predominariam por conta da sua especialidade.
De acordo com o advogado Luiz Girotto, do escritório Velloza, Girotto e Lindenbojm, que defende a empresa, essa é a primeira vez que a segunda instância da Justiça federal afasta a aplicação da norma. Segundo ele, a decisão deve servir de precedente para casos semelhantes, já que diversos tratados internacionais – entre eles, os assinados com Argentina, Bélgica, França e Itália – trazem a mesma previsão. “A Receita queria fazer valer a norma interna como uma forma de aumentar a fatia de recursos obtidos com o Imposto de Renda, mas não se pode ignorar o que foi acordado nos tratados internacionais”, afirma. Segundo Girotto, se a decisão for confirmada no Superior Tribunal de Justiça (STJ), diversas empresas brasileiras importadoras de serviços que não incluem transferência de tecnologia poderão entrar na Justiça para cobrar o tributo pago a mais nos últimos anos.
A discussão sobre a incidência do IR sobre os valores pagos por prestações de serviços feitas por estrangeiras já é de longa data, segundo a advogada Ana Cláudia Utumi, sócia do escritório TozziniFreire Advogados. O primeiro caso emblemático envolve uma solução de consulta da Receita Federal no Paraná dada em resposta a uma indagação da Renault no fim dos anos 90. Na época, o fisco se posicionou de forma contrária à incidência do IR sobre esses serviços, respeitando o que havia sido acordado no tratado assinado entre o Brasil e a França. A partir desse momento começaram a proliferar soluções de consulta em todo o Brasil – gerando divergências entre os Estados. A definição do fisco só ocorreu com a edição do ato declaratório Cosit nº 1. “Por isso, a relevância desse julgamento em segunda instância, que acabou por fazer valer os tratados internacionais nesses casos”, afirma.
Na prática, a empresa que optar por discutir o tema tem que entrar com uma ação judicial antes de fazer a remessa dos valores ao exterior, já que o banco não aceita a operação se já não houver o pagamento do IR. “Por isso, muitas optam por aproveitar esses créditos no exterior ao invés de contestar o procedimento no Brasil”, diz Ana Utumi. O advogado Celso Grisi, do escritório L.O.Baptista., afirma que as empresas brasileiras que contratam serviços no exterior enfrentam uma série de dificuldades devido ao não-cumprimento dos tratados contra a bitributação. Ele diz que há estrangeiras que apresentam os valores líquidos da prestação de serviços para o Brasil e deixam os custos com tributos à parte. “Ou seja, os serviços se tornam mais caros para as brasileiras porque o Brasil não cumpre esses tratados”, explica. Ele prevê que enfrentará a situação em breve em mais um caso que assessora – uma empresa brasileira de telecomunicações que contrata serviços técnicos em 17 países, 9 dos quais com tratados assinados com o Brasil.
Apesar de a decisão do TRF ainda não ser definitiva, já que cabe recurso aos tribunais superiores, o advogado Mauro Berenholc, do escritório Pinheiro Neto Advogados, acredita que há grandes chances de que o STJ mantenha o que foi decidido. Isso porque, segundo ele, um caso clássico julgado pela corte em novembro de 2007, ainda que não trate do mesmo tema, dá indícios de que os ministros poderão ser favoráveis à prevalência dos tratados internacionais em relação ao IR sobre os serviços no exterior. O STJ afastou a incidência do ICMS cobrado por lei sobre a importação de bacalhau da Noruega no Estado do Rio de Janeiro porque a isenção estava prevista no antigo Tratado Geral de Tarifas e Comércio (GATT, da sigla em inglês), vigente até 1999.
A Procuradoria Regional da Fazenda Nacional da 4ª Região informou que aguarda a intimação do TRF para saber qual a estratégia a ser adotada nesse caso, mas adiantou ao Valor que o processo está sob acompanhamento especial por se tratar de uma matéria controversa.