Tributação sobre ações da bolsa será julgada no Carf

02 . 08 . 2011

Fonte: Consultor Jurídico
Rastros da desmutualização

Por Alessandro Cristo

Quando, em 2007, as bolsas de valores deixaram de ser entidades sem fins lucrativos para se tornarem empresas, a decorrente desmutualização chamou a atenção do fisco. Da noite para o dia, títulos dessas entidades — que eram isentas de Imposto de Renda e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido —, em poder de corretoras e bancos de investimento, viraram ações com valor de mercado. Com isso, choveram autuações milionárias sobre a valorização desses papéis, que passaram a variar conforme o patrimônio da Bovespa, da BM&F e da Central de Custódia e Liquidação de Títulos (Cetip). Passados mais de três anos, a questão ainda não está esclarecida. A maior parte das poucas sentenças da Justiça Federal paulista é favorável ao fisco, mas os entendimentos estão divididos. De segundo grau até agora, há apenas liminares.

Ao menos na esfera administrativa, o impasse está perto de acabar. O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, tribunal do Ministério da Fazenda que julga contestações de contribuintes contra decisões do fisco, deve levar o assunto a julgamento entre setembro e outubro.

“A tendência é que o julgamento seja rápido, já que uma norma do órgão prevê prioridade a casos de valor elevado”, afirma o tributarista Vladimir Segalla Afanasieff, do escritório Segalla e Toselli Consultores e Advogados. Ele tem pelo menos 12 casos aguardando julgamento no Carf. Segundo ele, nas delegacias de julgamento, primeira instância administrativa da Receita Federal, as impugnações levam, em média, seis meses para ter uma resposta.

“Na defesa administrativa, em que a análise é mais técnica, os argumentos são diferentes. Comprovamos que Bovespa e BM&F sofriam tributação exclusiva na fonte, o que desmonta a tese de que eram associações isentas”, diz o advogado. “Antes da desmutualização, mais de 50% do superávit das bolsas era tributado, o que reduz substancialmente as cobranças.”

Embora a solução nas delegacias seja rápida, a última instância administrativa da Fazenda ainda não se manifestou. “As decisões das delegacias são todas desfavoráveis ao contribuinte”, lembra a advogada Ana Paula Lui Barreto, do escritório Mattos Filho Advogados. Ela afirma ter ao menos cinco recursos aguardando julgamento no Conselho há mais de um ano.

A questão já envolve bilhões de reais de grandes bancos, principais alvos do fisco. Por isso, escritórios de renome estão no pleito, como Mattos Filho, que capitaneia a tese, Pinheiro Neto Advogados, Velloza & Girotto Advogados Associados e Miguel Neto Advogados. Em algumas bancas, como no Pinheiro Neto, a estratégia foi entrar com Mandados de Segurança coletivos para diversas instituições.

De clubes a holdings

O imbróglio é histórico. Entidades de mútuo, Bovespa, BM&F e Cetip, como toda entidade sem fins lucrativos, eram isentas do IRPJ e da CSLL. Como consequência, seus títulos patrimoniais — que corretoras eram obrigadas a ter para operar nessas bolsas, de acordo com a Resolução 1.655/1989 do Conselho Monetário Nacional — também não eram tributados. Apesar de serem associações, as bolsas foram obrigadas, por comandos da Comissão de Valores Mobiliários (Ofício Circular 325/1979) e do Banco Central (Circular 1.273/1987), a atualizar o valor desses títulos de acordo com seus balanços anuais. Devido ao fato de os papéis serem frações do próprio patrimônio das bolsas, seu valor variava conforme o superávit ou o déficit — raríssimo — dessas entidades. Segundo as instruções, as atualizações deveriam ser lançadas contabilmente em uma subconta nas reservas de capital, até que, obrigatoriamente, fossem incorporadas ao capital social.

Essa valorização, como já havia dito o Ministério da Fazenda em 1977, não seria tributada. “O acréscimo do valor nominal dos títulos patrimoniais das Bolsas de Valores, em decorrência de alteração do seu patrimônio social, não constitui receita nem ganho de capital das sociedades corretoras associadas e, por isso, pode ser excluído do lucro real destas desde que não seja distribuído e constitua reserva para oportuna e compulsória incorporação ao capital”, previu a Portaria 785 do Ministério.

Em 1997, a Receita Federal enfrentou a questão ao editar a Decisão 13 da Coordenação-Geral do Sistema de Tributação (Cosit), segundo a qual a mera substituição dos títulos por ações não gerava incidência do IR e da CSLL. Foi esse o motivo pelo qual entidades sem fins lucrativos voltadas à educação, saúde e desporto, quando perderam a isenção tributária em 1998, não foram obrigadas a recolher tributos ao se transformarem em empresas e incorporarem o superávit obtido com auxílio das isenções. Além da decisão da Cosit, as entidades também estavam protegidas pela Instrução Normativa 113/1998 e pela Solução de Consulta 7/2002, da Receita Federal, todas favoráveis aos contribuintes.

No entanto, em 2007, o órgão inverteu o posicionamento por meio da Solução de Consulta 10, da Cosit. Escorada na Lei 9.532/1997, que criou a figura da “devolução do patrimônio social”, a interpretação foi dirigida a instituições financeiras que participaram da desmutualização da Bovespa e da BM&F. Basicamente, determinava a incidência de tributos sobre a mais valia entre o valor que os associados entregaram para a formação do patrimônio social das entidades de mútuo, e o valor contábil das ações recebidas em substituição aos títulos. Para o fisco, ao afastar a tributação, o que a Portaria 785 do MF fez foi um “diferimento”, um adiamento da cobrança até o momento da efetiva desmutualização.

Jurisprudência em construção

O entendimento ganhou adeptos na Justiça, onde a maioria das decisões até agora tem sido favorável ao fisco. Boa parte das sentenças afirma que, para se transformarem em empresas, as bolsas tiveram antes que devolver aos seus associados o patrimônio de cada um. A devolução de patrimônio acontece quando uma associação é extinta, e seus bens são divididos entre os detentores de títulos, como em um clube. A diferença entre o valor entregue e o recebido de volta é tributada em 15% pelo IR, como previsto na Lei 9.532/1997, no artigo 17. Como, para operar nas bolsas, corretoras eram obrigadas a ter títulos dessas entidades, quando a desmutualização ocorreu, cada uma recebeu em ações das novas bolsas o equivalente ao que tinha em títulos patrimoniais, na proporção de R$ 1 para R$ 1.

“A Bolsa de Valores deixando de ser associação civil, deixou de ser sociedade sem fins lucrativos, (…) deixando seus títulos de existir, de modo a devolver às sociedades corretoras o patrimônio delas (…). Ao receberem tais bens, com os valores que agora comportam, [é] claro o ganho obtido pelas corretoras, efetuando-se uma adição ao lucro real e à base de cálculo da CSLL”, afirmou a juíza Claudia Rinaldi Fernandes, ao negar liminar em 2008 — ano em que saíram quase todas as decisões de primeiro grau.

“Com o processo de desmutualização e a consequente alteração estrutural da Bovespa (…), a transformação dos títulos patrimoniais em ações implicou, à evidência, a percepção de acréscimo patrimonial por parte das corretoras associadas, dando ensejo à incidência do Imposto de Renda e da Contribuição Social Sobre o Lucro”, concordou o juiz Eurico Zecchin Maiolino em sentença.

“A distribuição daqueles valores aos associados ou a transferência ou incorporação ao capital de outra sociedade, com finalidade lucrativa, torna tributável a atualização do valor dos títulos patrimoniais, com ganho patrimonial, outrora isento”, afirmou a juíza federal substituta Veridiana Gracia Campos ao julgar Mandado de Segurança.

“Dessa forma, (…) deverá incidir o IRPJ (…) e a CSLL (…) sobre a diferença entre o valor originário dos títulos da antiga Bovespa (entidade isenta) e aquele recebido a título de devolução e que formaram, agora na modalidade de ações, o patrimônio da Nova Bolsa”, reverberou o juiz federal Wilson Zauhy Filho em sentença proferida em 2009.

“A incidência fiscal contida no artigo 17 da Lei 9.532/97 (…) não demanda o recebimento efetivo de numerário, pois a prevê sobre a mera transferência do valor dos direitos recebidos de instituição isenta”, disse a desembargadora Alda Basto, em decisão de 2008 que cassou liminar contra a tributação — uma das poucas em segunda instância.

O Tribunal Regional Federal da 3ª Região ainda cassou uma liminar concedida pela então presidente do tribunal, desembargadora Marli Ferreira, a favor dos contribuintes. “Considerei (…) o fato de ter sido editada pelo MF a Portaria 785/77, na qual se afirmava que a atualização de valor de títulos não se configuraria hipótese de incidência do IR, desde que não distribuídas e mantidas em conta de reserva para futuro aumento de capital”, disse ela ao julgar Agravo de Instrumento em 2007. “Independentemente de a manifestação de vontade da Administração ter sido expedida dez anos antes da ocorrência da cisão da Bovespa e da BM&F, originando a Bovespa Holding S/A e a BM&F S/A, o certo é que havia paradigmas que indicavam às agravantes a não incidência da exação.”

Para o advogado José Maurício Carvalho Abreu, do escritório Miguel Neto Advogados, que também obteve liminar no TRF-3, expedida pelo desembargador Nelson Nery Júnior, a decisão da corte em reverter a ordem concedida pela desembargadora Marli Ferreira pode significar uma tendência. “Ainda é cedo para dizer, mas o fato de o tribunal não concordar mostra uma sinalização”, avalia.

Os tributaristas concordam que a frequência das decisões favoráveis foi menor. Boa parte delas veio do juiz Maurício Kato, elogiado pelos advogados por motivos óbvios. “Não se cuida de distribuição de lucro, até porque a BM&F e a Bovespa não possuíam fins lucrativos, mas de, no plano contábil, mero fato permutativo, que implica a troca de elementos patrimoniais (títulos por ações) sem, contudo, provocar a alteração do patrimônio líquido do contribuinte, afirmou o juiz em ao menos duas sentenças, lançando mão de conceitos contábeis. “Somente se houvesse a ocorrência de fatos modificativos positivos, que importassem o aumento dos elementos do patrimônio líquido da impetrante, se poderia ter por caracterizado o acréscimo patrimonial tributável.”

“O resultado positivo não está sujeito à tributação enquanto não se implementar a alienação do investimento, pois é somente nesse momento que se dará a aquisição definitiva da disponibilidade do ganho auferido pela empresa investidora”, concordou o juiz José Carlos Motta ao conceder a segurança a uma corretora em 2009.

Segundo a advogada Lívia Balbino Fonseca Silva, do Mattos Filho, o menor número de decisões favoráveis aos contribuintes não indica qual corrente a Justiça seguirá. “O Judiciário adota o posicionamento dos tribunais superiores, e se posiciona de forma mais inibida enquanto aguarda”, analisa. Com pelo menos dez casos sob sua responsabilidade, ela crê que a questão chegará ao Supremo Tribunal Federal. “O que está em discussão são os conceitos de lucro e renda.”

Troca de papéis

Nem mesmo a definição do que seja o benefício que evita a tributação sobre as ações tem unanimidade, o que alguns atribuem a um erro do Ministério da Fazenda. A Portaria 785, de 1977, afirmou que o acréscimo do valor nominal dos antigos títulos patrimoniais não era nem renda, nem ganho de capital. Ou seja, disse o que não era, mas não explicou o que de fato era a natureza jurídica do acréscimo. Coube ao Banco Central afirmar que ele tinha natureza de capital social, ao impor o registro contábil na conta de reserva de capital social.

 

Se for assim, usar a Lei 9.532 para tributar pode ser infrutífero para o fisco, já que a valorização foi meramente contábil, na opinião de tributaristas. Para eles, nem mesmo a alienação das ações como ativo tiraria a natureza de capital social das atualizações, que também não poderiam ser classificadas como realização de reserva de atualização de ativos. Na prática, o lançamento contábil no ativo seria apenas o lastro para se atualizar o capital social, do outro lado do balanço.

Há quem entenda, por isso, que, pela interpretação por exclusão da Portaria 785 do MF — “tirando fora o que não é, sobra o que é” —, a situação tributária seria análoga à de subvenção para investimentos. Nesse caso, só seria cabível a tributação no encerramento da empresa ou na redução de capital social com devolução de valores aos sócios, nos termos da Medida Provisória 449/2008. A norma instituiu o Regime Tributário de Transição para as alterações contábeis feitas pela Lei 11.638/2007.

No entanto, de acordo com Ana Cláudia Utumi, do TozziniFreire, as subvenções de investimento de que trata a MP 449 estão ligadas a benefícios fiscais como os de ICMS, concedidos como estímulo à atividade econômica, e não à desmutualização. “O que havia era uma isenção concedida às bolsas quando elas eram entidades sem fins lucrativos”, explica a advogada. Segundo ela, quando as autuações do fisco começaram, a banca chegou a dar pareceres a corretoras defendendo a não tributação da valorização das ações. “Os títulos eram reflexo do patrimônio líquido. Não faz sentido tributar sem a realização por meio de alienação.”

O tributarista Vladimir Afanasieff usa a mesma tese. “Foi uma permuta sem torna”, defende. Ele afirma ter pelo menos dois casos aguardando decisão judicial, com diversos litisconsortes. “As corretoras preferiram entrar com Mandado de Segurança coletivo do que uma conseguir liminar e outra não.”

Para Lívia Fonseca Silva, não é possível tributar nem mesmo quando as corretoras transferem as ações das bolsas aos sócios. “Não é uma alienação, é uma transmissão.” Em alguns casos, a estratégia é usada para reduzir o valor do IR na venda das ações. O imposto incide à alíquota fixa de 15% sobre o ganho de capital de pessoa física. Já no caso da pessoa jurídica, o ganho é somado ao lucro, cuja tributação pode chegar a 34%.

Na opinião de especialistas, tributar o acréscimo no caso das bolsas pode gerar situações de desequilíbrio. Há instituições financeiras que venderam seus títulos patrimoniais antes da desmutualização, e computaram a atualização contábil dos papéis como custo. Há também quem adquiriu títulos no mercado secundário pagando pelo valor original, acrescido das atualizações. Em ambos os casos, a tributação seria desigual.

Alessandro Cristo é editor da revista Consultor Jurídico

Revista Consultor Jurídico, 2 de agosto de 2011