Agente da discórdia

25 . 09 . 2014

Valor Econômico

Entrevista com a Dra. Graciela Casanova Barros, Advogada Associada V&G.

Por Luciana Seabra | De São Paulo

O engenheiro Mario Martins de Mello Neto, 65 anos, ainda não se recuperou do prejuízo de R$ 55.234,72 que teve com investimentos em ações em 2011. “Entrei em depressão”, diz. Os recursos aplicados, originalmente R$ 90.335,08, conta, eram o capital de giro de sua empresa, uma fábrica de tortas no Rio. Em abril deste ano – 2 anos e meio após ter entrado em contato com o ombudsman da Bovespa e da sequência de quatro julgamentos – veio a decisão favorável da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). A autarquia determinou que o investidor fosse ressarcido no valor atualizado de R$ 78.420,90, em voto contrário ao da BSM, braço de autorregulação da bolsa.

No voto final, a autarquia entendeu que o serviço de consultoria foi delegado pela corretora, a XP Investimentos, a quem não está autorizado a fazê-lo, um agente autônomo, o Guia da Bolsa. Os pareceres ao longo do processo e o grande número de reclamações sobre esse personagem – um exército de 5.500 agentes autônomos segundo a Associação Nacional das Corretoras e Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários, Câmbio e Mercadorias (Ancord) – indicam que a função tem com frequência fugido à cartilha.

O agente autônomo é proibido de realizar serviços de consultoria, análise e administração de carteira, segundo a Instrução nº 497 da CVM. Cabe a ele apenas a prospecção e captação de clientes, recepção, registro e transmissão de ordens e prestação de informação sobre os produtos oferecidos.

“Fazendo um paralelo para simplificar, é como se o agente autônomo fosse um representante comercial”, diz Graciela Barros, especialista em mercado de capitais do Velloza e Girotto Advogados Associados. A separação para o papel de consultor “é muito sensível na prática”, considera, já que o agente autônomo conversa com o investidor sobre seu perfil e opções de investimento.

Do ponto de vista formal, é até relativamente simples diferenciar um agente autônomo de um consultor, escreve o superintendente de relações com o mercado e intermediários da CVM, Waldir de Jesus Nobre, ao avaliar as queixas de Mello Neto, em um dos primeiros pareceres da área técnica sobre o caso. O consultor é remunerado pelo investidor e existe uma relação de confiança entre eles, enquanto o agente autônomo é vinculado e remunerado pela corretora, aponta. “Entretanto, apesar dessas diferenças importantes, os dois profissionais estariam, na prática, exercendo função similar, qual seja, de recomendar investimentos aos clientes.”

Ainda que tenha votado contra a reparação ao investidor via Mecanismo de Ressarcimento de Prejuízos (MRP) – o fundo administrado pela BSM -, por considerar que o instrumento teria como foco principal cobrir falhas no sistema de negociação, Nobre destaca que o conjunto das provas “causa certa perplexidade”. As gravações com os registros das ordens mostram que os intermediários atuavam de forma bastante proativa, afirma. “Os agentes autônomos iniciavam o contato, sugeriam negócios e até mesmo analisavam a carteira do investidor, não raro aconselhando-o a tomar determinada decisão”, escreve. Mesmo que exista a anuência do investidor antes da efetivação do negócio, Nobre escreve que cabe trazer à discussão se o comportamento está de acordo com a Instrução nº 497.

Mello Neto diz ter descoberto que não era atendido pela corretora e sim por um agente autônomo, que não poderia gerenciar sua carteira, somente ao longo do processo na CVM. O engenheiro, que levou à frente o processo sem ajuda de advogado, afirma que recebia ligações do agente e sempre concordava com as sugestões. “O cara liga para você, você vai discutir com ele? Como vou discutir se não entendo nada?”, questiona.

O engenheiro aposentado não era novato na bolsa. Investia há seis anos via outra corretora, a Planner. Usava, entretanto, análise fundamentalista, avaliando os balanços das empresas. Era estreante na análise gráfica, técnica que decidiu seguir depois de assistir a uma palestra da XP. “Não conhecia e não sei até hoje ler gráfico”, diz, completando que nem sabe com que ações teve prejuízo.

A CVM, depois de fazer o processo voltar à BSM para novo julgamento, decidiu contra a autorreguladora. No voto final, a autarquia apontou que Mello Neto escolheu assinar com a XP o chamado “Plano Private”, que incluía a prestação de serviço de consultoria. E considerou que a corretora ofertou um serviço de consultoria, mas falhou em sua obrigação de provê-lo adequadamente, permitindo que o cliente operasse sob a orientação de pessoas que não eram aptas a fazê-lo. “Tal fato é um claro indicativo de quebra na relação de confiança que deve existir entre o investidor e o intermediário”, escreve a autarquia na decisão.

“É patente que a delegação do serviço de consultoria à pessoa que não está autorizada a fazê-lo implica quebra do dever de diligência e, portanto, pode implicar na responsabilidade da corretora”, destaca ainda a CVM no voto favorável ao investidor, com base no entendimento da relatora Ana Novaes.

O “Plano Private”, segundo a XP, era uma opção de serviço em que o investidor ligava para o agente autônomo para repassar as ordens, em contrapartida ao “express”, em que o cliente executava a ordem via “home broker”. “Estamos reformulando para ficar mais claro ao investidor”, diz Gabriel Leal, diretor de expansão da XP, corretora com a maior rede de agentes autônomos do mercado, cerca de 400.

A orientação aos agentes autônomos, segundo Leal, é que eles se limitem à distribuição. A corretora tem analistas, não comissionados, que fazem a seleção de produtos e recomendações de compra e venda, sendo que cabe ao escritório intermediário apenas distribuir essas informações. “Se o agente autônomo esbarra com um cliente que quer opiniões sobre a carteira, sobre um produto ou outro de investimento do qual por um algum motivo não foi feita análise, deve solicitar à corretora, que emite uma opinião especializada, e repassar ao cliente”, diz Leal.

Segundo o diretor de expansão, a XP fiscaliza o trabalho dos agentes autônomos por meio de uma equipe de auditoria, formada por 15 pessoas, que visita escritórios, tem clientes ocultos e avalia as gravações telefônicas obrigatórias por amostragem. Existe, diz Leal, um processo de penalização interno, que chega no limite ao rompimento do contrato com o autônomo.

Cabe ao agente autônomo, ciente do que pode e do que não pode fazer, trabalhar dentro dos limites que a regra impõe, diz Marina Procknor, sócia do escritório Mattos Filho. “Por não ter conhecimento do mercado como um todo, muitos clientes confundem o agente autônomo com o gestor ou consultor”, afirma. E, de fato, considera, nem tudo é preto e branco, há uma zona cinzenta entre o que é permitido ou não ao intermediário. “Existem armadilhas em que fica complicado entender se ele estaria ou não passando do escopo dele”, diz.

A orientação de Marina é que o agente autônomo seja visto como o braço da instituição financeira destinado a distribuir produtos. Qualquer coisa que ele diga que não esteja no relatório aprovado pela corretora, no prospecto do fundo, pode extrapolar e entrar na seara de consultoria, afirma, como um apontamento no sentido de ser o momento de comprar ou vender uma ação específica. “O agente autônomo deveria evitar qualquer tipo de acompanhamento da carteira do investidor”, diz.

“Tem uma linha tênue”, afirma também Fábio Cepeda, do Cepeda, Greco & Bandeira de Mello Advogados. O agente autônomo até pode ter um papel ativo, diz, ligando para o investidor para falar de uma emissão ou oferta pública de distribuição de ações. Não pode, entretanto, dizer que o cliente deveria ficar mais alocado em ações boas pagadoras de dividendos ou menos afetadas por pesquisas eleitorais, por exemplo, julgamentos que ultrapassam as fronteiras para o consultor ou administrador de carteira.

Cepeda diz entender o desejo da CVM de evitar conflitos de interesse ao separar os papéis. Uma alternativa, diz, seria a transparência – garantir que o investidor saiba que o profissional tem dois chapéus, um de distribuidor e um de consultor ao contratar o serviço. “É mais eficiente para investidores mais sofisticados. Eventualmente os menos sofisticados sequer têm capacidade de avaliar esse conflito”, considera o advogado.

O caminho é a educação do investidor e do mercado, diz José David Martins Junior, diretor-superintendente da Ancord. Novato nas aplicações em renda variável, o investidor muitas vezes não sabe nem que precisa acessar uma corretora para comprar ações, diz, quanto mais do que pode pedir ou não ao agente autônomo.

A Ancord estrutura uma proposta para levar à CVM, segundo Martins Junior, para que haja gradações na atuação do agente autônomo, a exemplo do que ocorre no mercado americano. No modelo defendido pela associação, o agente autônomo com certificação básica só poderia distribuir. O que tivesse interesse em aconselhar o cliente sobre renda fixa, por exemplo, teria esse direito desde que obtivesse uma certificação adicional. Outros teriam credencial para aconselhar em renda variável. Haveria assim diferentes classes de agentes autônomos.

A vigência do modelo, considera Martins Junior, deveria passar pela qualificação do agente autônomo, com exigência de nível universitário, por exemplo. Hoje basta ensino médio. Também seria necessário modificar a regulamentação. A CVM informou que, no momento, não há previsão de audiência pública da Instrução nº 497, atualizada pela última vez em junho de 2011.

 

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