Fonte: Valor Econômico
19 de janeiro de 2016
Entrevista com Guilherme Fernandes Cooke, Sócio V&G.
Por Luciana Seabra
Aos poucos, um tema que sempre foi tabu no Brasil começa a ser posto na mesa dos serviços de gestão de fortuna e escritórios de direito: dinheiro não declarado no exterior. Falar sobre o assunto ficou mais confortável desde que a presidente Dilma Rousseff sancionou, na última quarta-feira, a lei que cria o Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT). Para quem considera a promessa de perdão criminal crivei e pretende aderir, já é possível tomar os primeiros passos, enquanto se aguarda a regulamentação da Receita Federal, que deve acontecer até 15 de março.
“É um instrumento com segurança jurídica importante, que era a grande preocupação não só das instituições financeiras como também dos contribuintes, e robusto. Estamos tranquilos em relação a isso”, diz William Heuseler, responsável pela área de planejamento patrimonial no private banking do Itaú. “Na nossa opinião não há duvidas que se deve usar essa oportunidade para regularizar os recursos”, completa.
À espera da regulamentação da Receita para orientar melhor os clientes, o ltaú já tem colocado seus escritórios de private banking em Miami, nos Estados Unidos, e em Zurique, na Suíça, à disposição para auxiliar no planejamento do patrimônio, dado que a fatia estrangeira vai tomar-se legal.
“Para aqueles que não tenham instrumentos de sucessão, acho que é uma grande oportunidade para se falar disso”, diz Heuseler. E dá um exemplo. No Rio, a partir de 29 de março o Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) passa dos atuais 4% para 4,5% ou 5%, a depender do patrimônio herdado. Para um contribuinte do Estado, portanto, pode valer a pena aderir à anistia logo no inicio e antecipar a transmissão à próxima geração, aproveitando a alíquota antiga.
A expectativa é que a regularização movimente o mercado de gestão de fortunas brasileiro. “As pessoas vão necessitar de auxílio, seja operacional seja de gestão em si”, diz Gustavo Sandoval, sócio da gestora de patrimônio Taler.
A área de private banking da XP promoveu nos últimos meses dez encontros com advogados, cada um com 40 a 50 clientes, em que o regime de regularização cambial e tributária foi colocado na mesa, em meio a outras mudanças tributárias. “Em geral nessas palestras o consenso é de que a lei está bem escrita, não tem muitas falhas, de que eles deveriam aderir”, diz Beny PodIubny, responsável pela área de gestão de fortunas da XP Investimentos.
A lei não obriga que o dinheiro seja repatriado. A expectativa do mercado, entretanto, é que parte desse montante volte ao Brasil – até 20%, na opinião de PodIubny. Para um brasileiro, com gastos em reais, e grande parte do patrimônio fora, diz, pode fazer sentido equilibrar a alocação. E há um incentivo pelo lado das opções de investimento “O Brasil está vivendo uma época de taxa prefixada muito alta, que pode ser aproveitada por quem trouxer o dinheiro de volta”, afirma.
O dólar em patamar elevado também dá conforto à conversão em reais. E em tempos de crise, com crédito limitado e a custos altos no mercado doméstico, alguns empresários devem optar por constituir uma empresa com o dinheiro legalizado fora e fazer empréstimos a sua companhia no Brasil, espera Gileno Barretu, sócio do Loeser e Portela Advogados. O outro motivo para repatriar parte do dinheiro é pagar a multa, caso não haja montante suficiente liquido no Brasil para arcar com o compromisso.
Para o caso em que a opção é trazer o dinheiro para o Brasil, a lei determina que isso seja feito por intermédio de instituição financeira autorizada a funcionar no pais e a operar câmbio, mediante apresentação do protocolo de entrega da declaração.
Os bancos brasileiros participam obrigatoriamente do processo para valores superiores a US$ 100 mil. Nesse caso, o contribuinte vai solicitar e autorizar a instituição financeira no exterior a informar o saldo dos ativos em 31 de dezembro de 2014 a uma instituição financeira autorizada a funcionar no Brasil, que prestará as informações à Receita. O entendimento dos advogados é que o banco vai ser mero intermediário no processo, mas que, mesmo assim, vai obedecer à legislação e seguir os procedimentos corriqueiros de controle à lavagem de dinheiro.
Para tomar a decisão de aderir ou não ao regime e de que destino dar ao dinheiro já foi dada a largada. As condições principais para a decisão já estão postas. A parte que cabe ao Leão, soma de tributo mais multa, que chegou a ser vista como uma barreira à adesão, foi mais bem aceita no patamar de 30% dado que o câmbio para adesão foi fixado em 31 de dezembro de 2014, ou seja, R$ 2,66. Na prática, a valorização do dólar, hoje no patamar de R$ 4, vai pagar uma parte da multa pelo contribuinte. Quem tinha US$ 1milhão fora ao fim de 2014, por exemplo, o equivalente a R$ 2,66 milhões, vai pagar à Receita 30% disso, ou seja, R$ 798 mil. Hoje, entretanto, o patrimônio já avançou a R$ 4 milhões, dos quais a mordida de R$ 798 mil corresponde a bem menos, 19,95%.
Além de estudar a alíquota, o contribuinte deve avaliar se todos os crimes que cometeu estão anistiados no programa. O perdão refere-se principalmente a sonegação fiscal, evasão de divisas e lavagem de dinheiro. No texto da lei não aparece a palavra provas, o que torna a adesão viável já que a essa altura qualquer rastro dos crimes deve estar queimado, considera Guilherme Cooke, especialista em legislação do mercado de capitais e sócio do escritório Velloza e Girotto. O texto trata de “descrição das condutas praticadas” e “declaração” de origem em atividade lícita.
“Acreditamos que a regulamentação não vai exigir que na declaração seja enviado qualquer documento. A Receita nem tem sistema para isso”, diz Cooke.
Para advogados, não será necessário enviar documentos no primeiro momento, mas a Receita pode exigir vê-los no prazo de cinco anos.
A lei é clara, entretanto, sobre a obrigatoriedade de manter “em boa guarda e ordem” por cinco anos cópia dos documentos que amparam a declaração, além de apresentá-los se e quando exigido pela Receita Federal. E aqui se refere ao valor dos ativos, como um documento disponibilizado pela instituição financeira custodiante com o saldo existente em 31 de dezembro de 2014, no caso de depósitos bancários e investimentos. Para imóveis, veículos, aeronaves e embarcações, a ordem é apurar o valor de mercado por meio de avaliação de entidade especializada.
Essa fotografia do patrimônio é o que Cooke têm sugerido que os clientes comecem a fazer, antecipando-se à regulamentação pela Receita, tornando mais confortável o prazo posterior para adesão, de 210 dias. “Aqueles que já querem adiantar, e é saudável, podem juntar documentos que comprovam a titularidade dos ativos”, diz também Ana Carolina Monguilod, sócia tributarista do Levy & Salomão Advogados.
Pela forma de trabalhar da Receita, a expectativa dos advogados é que a declaração única de regularização, à qual a lei faz referencia, ganhe corpo por meio de um formulário eletrônico, bastante similar à declaração anual de imposto de renda. Nele o contribuinte deve listar um a um os recursos, bens e direitos no exterior, já que a lei trata de “descrição pormenorizada”. Além disso, têm que afirmar que os bens ou direitos declarados têm origem em atividade econômica lícita. Da declaração, já deve sair uma guia para pagamento do valor devido, com prazo. A presidente vetou o dispositivo que criava a possibilidade de parcelamento da multa.
Pelo texto da lei, Barreto, sócio do lneser e Portela Advogados, acredita que não será preciso detalhar o histórico do dinheiro. “Acredito que a Receita Federal vai exigir que você diga qual é a origem, como renda pessoal, ou lucros da empresa, provavelmente algo dessa natureza”, diz.
Um cuidado que Barreto recomenda ao contribuinte é avaliar também o que precisa ser feito no país em que o dinheiro está. Em alguns casos, como de Portugal, há acordo de bitributação com o Brasil. Basta, assim, prestar contas à Receita brasileira. Em outros, entretanto, caso dos Estado Unidos, não existe o acordo. Se há a intenção de aderir à anistia brasileira, é preciso regularizar a situação ao mesmo tempo nos Estados Unidos, pagando o imposto devido, ainda mais em tempos de trocas de informação fiscal entre países.
Deve-se considerar declarar, segundo Barreto, até mesmo o dinheiro que já foi usado no exterior. Na audiência pública sobre regularização de recursos, da qual o advogado participou como palestrante, foi informado que o governo brasileiro já recebeu do americano informações tributárias de 150 mil brasileiros, no âmbito do tratado de troca de informações, o Fatca (Foreign Account Tax Compliance Act, na sigla em inglês). Para fins tributários, diz Barreto, gastos feitos há mais de cinco anos não seriam mais punidos. A prescrição, porém, é mais demorada para outros crimes, como de evasão de divisas.
A necessidade de declarar dinheiro que já tinha sido gasto antes de 2014 é um ponto que causa preocupação no projeto, segundo Ana Carolina, do Levy & Salomão. “A lei não esclarece por quanto tempo você deveria voltar para reconstruir esse passado”, afirma, ao considerar essa recuperação bastante trabalhosa e, caso insatisfatória, capaz de anular o perdão criminal.