Fonte: Estadão
Artigo escrito por Carlos Mauricio Mirandola, Advogado Associado V&G.
Artigo publicado originalmente no Estadão Noite
A Operação Lava Jato tem sido responsável por evidenciar mudanças significativas em diversos paradigmas no combate e repressão de crimes do colarinho branco. Primeiro, foram as prisões em massa de suspeitos sofisticados, executadas em operações policiais complexas em dezenas de localidades, coordenadas ao ponto de parecerem coreografadas. Em seguida, foi a utilização de um instituto relativamente novo em direito penal brasileiro, a delação premiada. Depois, foi a prisão provisória e preventiva de personagens de inegável importância econômica, e, mais importante, a manutenção dessas prisões em todas as instâncias do judiciário. Então vieram as prisões de políticos de grande gabarito no exercício de mandato.
Agora, em sua vigésima segunda fase, denominada ‘Triplo X’ segundo os noticiários, a Lava Jato parece indicar querer subir mais um degrau na escada da moderna investigação policial: a desconstrução de sofisticados esquemas de ocultação de propriedade e elisão de identidade. Até o momento, as evidências e crimes investigados tinham a ver com acordos e pagamentos diretos ou pessoais. Em tais casos, as técnicas investigativas são mais tradicionais, de certa forma, porque têm a ver com a busca de evidências de contato entre suspeitos, transferências de valores, busca de vídeos, testemunhos ou documentos indicando que certas pessoas discutiram, reuniram-se, tramaram, combinaram, contrataram, acertaram ou realizaram atos que implicam uma certa organização. O investigador, nesses casos, é um indivíduo de ação que realiza trabalho eminentemente de campo – segue e interroga suspeitos, lê gravações, interpreta documentos, faz buscas, junta peças de um quebra-cabeça para formar a imagem da organização criminosa.
A Triplo X indica uma mudança. A analogia preferencial para o processo investigativo não é mais a montagem de um quebra-cabeça, mas, sim, a desembalagem de um equipamento ou um presente. O investigador é um indivíduo de análise, que se debruça sobre toneladas de papéis e dados, busca padrões, percebe discrepâncias em documentos, realiza testes empíricos para verificar se o conteúdo de documentos bate com a realidade, checa se existe materialidade nas asserções e fatos aduzidos pelos investigados. Nesse sentido, o personagem principal da investigação é o perito, que trabalha cientificamente: diante dos fatos, busca hipóteses alternativas e as testa, checando premissas e notando falhas. Do seu escritório, longe das ruas, o perito analisa e desconstrói contratos e escrituras, cruza informações, busca cooperação estrangeira, rastreia inconsistências e testa a veracidade da informação apresentada no papel. Confere se o que está por fora na caixa do presente bate com seu interior. A sofisticação desse trabalho é maior no sentido de que implica enxergar por detrás de estruturas construídas com o único objetivo de ofuscar a realidade, criando cadeias de documentos (‘paper track’) falsas, esconder identidade do proprietário real, introduzindo camadas (‘layers’) de pessoas interpostas, representantes e mandatários, fazer sentido de transações que, individualmente tomadas, são comuns e legais, mas, quando tomadas como um todo, devem ser vistas como ilegais.
Essa mudança da natureza da investigação poderá ter repercussões grandes. Em primeiro lugar, em vista da tecnicidade das acusações, o defensor eficaz do investigado tenderá a deixar de ser o ‘rábula’, que tem acesso a instâncias superiores, faz embargos auriculares e padece da verve retórica, para se tomar também um perito. A discussão de teses jurídicas deve perder um pouco da precedência para dar lugar à discussão técnica. Grandes equipes multidisciplinares serão montadas para dar suporte à defesa. Em segundo, as provas apresentadas serão mais difíceis de serem compreendidas pelos leigos, e os julgadores, especialistas em direito mas generalistas nas ciências, terão que se apoiar em peritos para as avaliarem. Prova mais complexa implica maior complexidade de olhar. Em terceiro, o público, que segue as investigações pelos veículos de comunicação, poderá ficar mais confuso. A imprensa também precisará se apoiar em especialistas para fazer sua audiência e compreender o que estará em jogo. O risco, no final das constas, é de que estes stakeholders não estejam prontos para a tendência de maior complexidade e tecnicidade. Do lado da defesa, a responsabilidade dos eventuais criminosos poderá ser exagerada. Do lado dos julgadores, culpados poderio ser liberados, inocentes poderão ser condenados. E, do lado do público, poderá haver incompreensão. Em todos os casos, poderá ser prejudicado o senso de justiça.
O geek cop veio para ficar. Que venham também o geek lawyer, o geek judge e a geek press.
*Carlos Mauricio Mirandola é coordenador da área de mercado de capitais e compliance financeiro do Velloza e Girotto Advogados, é bacharel, mestre e doutor em direito pela USP, e LL.M e JSD candidate pela Columbia University.